Neurologistas avaliam como as redes sociais afetam a memória: "Logo passaremos a ter menos capacidade de atenção do que um peixe."
O rosto de uma pessoa que é familiar, mas o nome dela não vem à mente, a chave do carro que foi parar sabe-se lá onde na hora de sair de casa. Tudo isto são exemplos de casos esporádicos e momentâneos de falta de memória, mas a verdade é que eles tendem a ser cada vez mais recorrentes e a aparecer cada vez mais cedo na vida das pessoas.
À CNN, os especialistas em neurologia e psiquiatria dizem que muitos fatores podem estar contribuindo para este cenário. O estresse e a tecnologia são os que mais se destacam, com especial atenção para o segundo fator, que surge cada vez mais cedo na vida das pessoas e acaba por ter um impacto direto na capacidade de concentração e memória. Também é necessário considerar nessa equação o avanço da idade.
“O próprio envelhecimento normal leva à perda de faculdades de forma gradual e progressiva, sendo que a atenção, a concentração, o rendimento de trabalho e algumas formas de memória são das primeiras dimensões a ser afetadas em idades tão precoces como a partir dos 30 a 35 anos”, começa disse Alexandre Amaral e Silva, neurologista no Hospital CUF Tejo e no Hospital CUF Santarém.
“Não é uma questão de preguiça ou de perder o senso”, diz Amir-Homayoun Javadi, professor de Psicologia e Neurociências Cognitivas na Universidade Kent, Reino Unido.
O especialista aponta que a pandemia também teve um papel importante no fator determinante para a memória. “Como passamos por uma fase pandêmica nos últimos dois anos, isso faz com que se torne mais difícil para os nossos cérebros criar e relembrar memórias”.
O mito da multitarefa
Em 2018, a Universidade de Stanford publicou uma entrevista com Anthony Wagner, professor de Psicologia e diretor do Stanford Memory Laboratory, em que o especialista alertava para as consequências da multitarefa — a execução de várias tarefas ao mesmo tempo, como “assistir” a uma série enquanto vê as últimas atualizações em uma rede social, estudar enquanto se mantém uma conversa por escrito com outra pessoa, trabalhar em mais do que um projeto simultâneo.
Para muitas pessoas, a capacidade de fazer mais do que uma tarefa ao mesmo tempo é algo positivo, quase que um superpoder dos tempos modernos — e muitas vezes até presente como requisito em anúncios de emprego — mas a verdade é que o nosso cérebro não gosta tanto assim desta sobrecarga de trabalho.
Ele até pode realizar tarefas ao mesmo tempo, mas a atenção dada a cada uma delas é deficitária e a memória fica prejudicada.
Segundo Wagner, que, ao longo de uma década, estudou a memória em ambiente de múltiplas tarefas realizadas em paralelo, tendo publicado os resultados dessa investigação na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, a multitarefa afeta diretamente a memória de trabalho e a atenção e compromete tarefas simples de memória, como lembrar onde deixou a chave de casa no dia anterior.
O neurologista Alexandre Amaral e Silva considera que, “na maior parte das situações, a multitarefa é prejudicial, não só para a memória como para o desempenho cognitivo em geral”.
E explica o porquê: “a divisão da atenção por diversas tarefas ao mesmo tempo pode comprometer a concentração, diminuir a velocidade de processamento da informação e comprometer a qualidade do desempenho, levando a uma menor eficácia na realização das tarefas”.
No fundo, ele diz, mudar de tarefa em tarefa, tentando na verdade realizá-las ao mesmo tempo, dificulta “a apreensão e retenção dos detalhes de cada uma e levando ao registo de informações fragmentadas e menos estruturadas”.
Em 2020, a revista Nature publicou um outro estudo sobre a multitarefa, revelando que o uso em simultâneo de várias ferramentas digitais — como fazer uma pesquisa online ao mesmo tempo que se “vê” televisão — pode prejudicar a atenção, sobretudo em adultos jovens (entre os 18 e os 26 anos), tornando pior a capacidade de recordar mais tarde situações ou experiências específicas.
O resultado, alerta Alexandre Amaral e Silva, é “uma sobrecarga de informação que induz uma simplificação da abordagem das tarefas e impede uma reflexão adequada sobre os acontecimentos que seria fundamental para uma eficaz consolidação da memória”.
“Em crianças e jovens há evidências claras de problemas com a atenção, distúrbios do sono e da ansiedade com impacto em termos de rendimento acadêmico relacionados, em particular, com a multitarefa digital”, continua o neurologista.
Estresse: o combustível para o estado de alerta
O estresse é uma resposta fisiológica com papel importante para colocar o organismo num estado de preparação para um desafio físico e cognitivo. É o combustível para o estado de alerta e atenção, mas apenas quando em cargas moderadas, o que, nos estilos de vida atuais, tende a ser cada vez menos frequente.
“A ciência começa a reportar em animais que há um efeito do estresse no envelhecimento celular, mas ainda não se consegue identificar isso em humanos e perceber qual o impacto a longo prazo”, diz Sofia Sousa, neurologista no Hospital de Braga, que adianta que a Universidade do Minho tem realizado algumas pesquisas sobre o impacto do estresse no funcionamento cognitivo, seja de profissionais, como professores universitários e enfermeiros, ou estudantes.
De acordo com um estudo publicado em 2009 na revista Frontiers in Behavioral Neuroscience, “o estresse é um forte modulador da função da memória, no entanto, a memória não é um processo unitário e o estresse parece exercer efeitos diferentes dependendo do tipo de memória, como a explícita e a de trabalho”.
A memória de trabalho é um componente cognitivo que permite o armazenamento temporário de informação com capacidade limitada, podendo chamar-se memória do presente, aquela que nos ajuda a lembrar algo aqui e agora e que vai construindo ‘gavetas’ com memórias futuras.
“A ciência começa a reportar em animais que há um efeito do stress no envelhecimento celular, mas ainda não se consegue passar para humanos e perceber qual o impacto a longo prazo”, diz Sofia Sousa, neurologista no Hospital de Braga, que adianta que a Universidade do Minho tem realizado algumas investigações sobre o impacto do estresse no funcionamento cognitivo, seja de profissionais, como professores universitários e enfermeiros, ou estudantes.
De acordo com um estudo publicado em 2009 na revista Frontiers in Behavioral Neuroscience, “o estresse é um forte modulador da função da memória, no entanto, a memória não é um processo unitário e o estresse parece exercer efeitos diferentes dependendo do tipo de memória, como a explícita e a de trabalho”.
A memória de trabalho é um componente cognitivo que permite o armazenamento temporário de informação com capacidade limitada, podendo chamar-se memória do presente, aquela que nos ajuda a lembrar algo aqui e agora e que vai construindo ‘gavetas’ com memórias futuras.
No caso das redes sociais, que são um dos principais entretenimentos online, João Cardoso, psiquiatra na Clínica Leite, não hesita em dizer que “estão feitas para isso”, para prender as pessoas, fazer com que queiram passar mais e mais tempo nelas.
“O Instagram e o TikTok têm um algoritmo para dar sempre a novidade e isso mexe com o nosso sistema de seeking [procura]. Tudo isto tem a ver com a dopamina, quando procuramos uma coisa boa produzimos endorfinas, endocanabinoides, mas é a dopamina que nos leva a procurar coisas”, disse.
No caso dos adultos, diz a neurologista Sofia Sousa, os dispositivos móveis e as redes sociais acabam por “cultivar bastante em termos de informação”, contudo, podem ter “o efeito de nos tornar menos ativos socialmente e a estimulação social com outras pessoas é essencial para o funcionamento cognitivo adequado”.
Nas crianças, por sua vez, a situação “é completamente diferente”, uma vez que o uso constante de gadgets “traz danos, porque [as crianças] estão numa fase de desenvolvimento neuronal, ficam mais irritadas e isso interfere na aprendizagem”, alerta a médica.
“Temos alguns estudos que revelam que o tempo de concentração de uma criança diminuiu nos últimos 20 anos. Antes conseguiam ter, mais ou menos, 12 segundos de foco, e um peixe dourado tinha oito segundos, passados 20 anos, as crianças têm em média sete segundos e passamos a ter menos capacidade de atenção do que um peixe e isso é preocupante. Temos que repensar tudo o que é tela, são péssimas”, alerta.
O psiquiatra diz que “não fomos feitos absorver tanta informação” e que, “numa fase da vida na transição da adolescência, os neurônios mais usados ficam e os menos usado vão embora”.
E qual o impacto dos gadgets, do consumo desenfreado de informação online e das redes sociais na memória a longo prazo? “Ligue-me daqui 50 anos e falamos”, diz o psiquiatra, lamentando que ainda não é possível medir os impactos, mas nós estimamos que sejam maus.
Quando as pequenas falhas de memória devem ser um motivo de preocupação?
Segundo o neurologista Alexandre Amaral e Silva, nas pessoas mais jovens, apesar de estarem mais à mercê das multitarefas e dos efeitos das telas na concentração, “raramente existe um compromisso primário da memória, sendo os motivos mais comuns dessas falhas pontuais e transitórias são fatores como os distúrbios de ansiedade/depressão, sobrecarga intelectual/emocional, distúrbios nutricionais e hormonais ou perturbações do sono”.
“Pequenos lapsos pontuais, sem repercussão relevante, como a dificuldade em lembrar um nome ou saber onde está um objeto, não são motivo de alarme, que são habitualmente superados em poucos segundos”, salienta o neurologista.
Porém, destaca que, “apesar das causas serem maioritariamente “benignas”, no sentido de não se tratarem de doenças com caráter degenerativo, elas não devem ser minimizadas e devem motivar uma correta avaliação e abordagem, particularmente se tiverem impacto relevante no desempenho diário”.
Para Alexandre Amaral e Silva, “a frequência dessas falhas, o seu impacto no desempenho escolar, profissional ou familiar, com diminuição do rendimento e da produtividade ou compromisso das relações interpessoais, são os sinais de alerta mais relevantes e que devem motivar o recurso a um apoio especializado”.
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